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terça-feira, 3 de maio de 2011

Entre verso-e-prosa com Ademario Ribeiro Payayá

Via Ademario Ribeiro Payayá:

Imagem disponivel no blog de Ademario Ribeiro


Você já foi à Bahia? Não? Então vá. É só pegar a estrada que vai para Simões Filho, onde vive Ademario Souza Ribeiro, um filho do povo Payaya. Sua aldeia: Canabrava (atual Miguel Calmon), no Estado da Bahia. Em seu blog Pensamentações, ele mesmo – Ademario - se apresenta:


Sertanejo das Terras dos Payayá, filho de Amélia Souza Ribeiro e de Alberto Severiano Ribeiro (in memoriam)... Escritor (poeta e teatrólogo), diretor teatral, educador ambiental, pesquisador dos povos indígenas e pedagogo. Membro, conselheiro e fundador de diversos coletivos entre estes: ONG ARUANÃ, Associação Muzanzu do Quilombo Pitanga de Palmares e Fundação Crê. Tem publicações diversas em jornais e sites.



Imagem disponivel no blog de Ademario Ribeiro


Em 2010, Ademario completou 52 anos, dos quais 44 anos correspondem ao tempo vivido na cidade. Estudioso da história e da cultura dos povos originários no Brasil, Ademario não esconde sua paixão pela língua Tupi; empregando-a nos poemas de sua autoria, nas peças teatrais que compõe e nas práticas pedagógicas com as crianças da periferia. Diante dessa realidade, cabe até perguntar: é certo dizer que uma língua é morta quando no dia a dia, essa língua ajudando-nos a suportar as dores do mundo? Conversando a respeito de vários assuntos, expomos também as nossas dúvidas em torno da tal Lei 11645/08 e outras questões pertinentes à literatura indígena e ao nosso lugar no mundo. Nesse ritmo, fiz algumas perguntas e ele, generosamente, arrecadou um pedaço do seu precioso tempo para responder o seguinte:


Graça Graúna (GG) – As línguas indígenas podem explicar por que o Português falado no Brasil se diferenciou bastante do falar lusitano. Como você vê a questão?
Ademario Ribeiro (AR) - Sim. Fantasticamente sim! As línguas indígenas contribuem até hoje no enriquecimento da língua portuguesa. As primeiras pesquisas dão conta de que a língua Tupi contribuiu com mais de 10 mil palavras à língua que Camões e Fernando Pessoa falavam. Contudo, há pesquisadores que apontam que mais de 20 mil foram vernaculizadas. Para onde se fosse ou aonde se quisesse chegar, o que se procurasse ou se perdesse, o que comer ou que beber, as distâncias e o lugar de mata, de água boa, o clima, os ciclos da natureza, os gêneros, os acidentes geográficos, etc. Vinha tudo na ponta da língua Tupi.
Toda a nobreza das línguas indígenas e, em particular, o predomínio do Tupi – foram decisivas para transformar o falar lusitano em uma Língua Pindorâmica, mais tarde, poetizada como “Língua Brasileira”.


GG - Considerando o tempo de formação profissional enquanto Diretor Teatral ou como Educador Socioambiental (há m24 anos) e mais 35 anos atuando como Escritor, até que ponto você acha que a sua identidade (étnica) é indispensável à produção do conhecimento?
AR - Minhas reminiscências ameríndias abrem minhas percepções para ver e estar COM as pessoas e COM os entes da Teia da Vida. Através desta dimensão me conecto com o Todo e se dá meu processo de produção de conhecimento. Utilizando-me dos cinco sentidos, vou me acoplando aos rios, ao ar, aos cheiros, às visões, às reminiscências: me reciclando, me curando, me reconectando com O Grande Espírito.


GG - O que você pensa da cultura indígena?
AR - Ela é a ontogenia da humanidade. Princípio e geratriz das culturas humanas. Ela guarda a essência, o segredo das terras, águas e céus. O ventre da fertilidade, o sopro do Grande Espírito que animam as nossas caminhadas, saberes e intervenções, nossas relações com o circular, com os ciclos, com os ancestrais, com as fêmeas, anciões e com as crianças, jovens e guerreiros. A cultura indígena como um Todo é a presença dialógica entre signos, símbolos e significados da nossa aventura na Mãe Terra.


GG - E a respeito de história indígena?
AR - Muito que ser escrita, reescrita, assentada, reassentada, num processo de afirmação do ethos de cada povo/etnia. A cultura e história precisam continuar a circular, fazer seus corrupios. Na cosmologia tupi somos o som (tu) que se pôs de pé (pi). O som que veio do Pai, o som do Criador por onde tudo passou a ter forma. Na história dos povos, a força da palavra esteve muito presente na mulher e através dela inscreveu seu matriarcado. A mãe tece seus fios e sua palavra se conecta com o Todo quando a enuncia. Os pajés têm a palavra que cura e que acalma ou que elucida as nuvens do amanhã. Os anciãos têm a palavra que nos ensina porque em suas caminhadas já se tornaram conhecedores das curvas e nos acalmam quando afoitos ou que nos alertam quando dormimos no ponto. Precisamos acordar e tomar tendência, posição para que tiremos dos subterrâneos as vozes veladas, expatriadas de Pindorama, de Abya Yala, banidas e amesquinhadas pelo eurocentrismo que engendrou as tantas faces dos preconceitos e discriminações e das tragédias que muito abateram os povos indígenas ou que afugentaram e expurgaram para bem distante daquela que chama para si a denominação de “civilização branca” que sob a argamassa dessa ignomínia - esse eurocentrismo fundamentou seus domínios. Muitas águas ainda vão rolar para nos livrar das marcas tão presentes nas almas e comportamentos explícitos e implícitos em nossa sociedade hodierna que mal se disfarçam ou que nos difamam. Nossa história agora não é outra, mas agora quem escreverá não serão os nossos algozes, nossos estigmatizadores – não serão os lobos disfarçados, não serão os “homens bons” ou seus filhos abastados que alisaram os bancos da ciência: nós sim, aqueles que se levantam junto COM seus ancestrais e COM os novos saberes tecidos com a força da nossa cultura e história.


GG- Como você vê a relação entre literatura e direitos humanos?
AR - Primeiro porque literatura é palavra. Tudo se revela quando a palavra soa, chega, voa, põe, impõe ou se esquadrinha no papel: pa (som) lavra: som da cultura humana. A literatura tem a capacidade, a sensibilidade, essa transversalidade e transdisciplinaridade de nos envolver. De estabelecer relações, de anunciar o devir. Cria estratégias e contextos para os valores de uma sociedade pacífica, humanitária se comuniquem com a alma e com o cotidiano das pessoas. A literatura lida com a escrita e a escrita é palavra, signos e assim vão se revelamos os direitos humanos, numa conquista da humanística até que a alteridade seja uma cultura dialogada COM o OUTRO e COM o BEM comum para TODOS.


GG - O que você acha dos recursos que as escolas não-indígenas utilizam na abordagem dos saberes indígenas?
AR - A educação brasileira estereotipou as culturas indígenas e daí, preconceitos e discriminações fundamentaram a práxis pedagógica. Reporto-me sobre um aspecto disto no poema “As coisas como elas são”, de minha autoria:


Se aprende na escola
Que casa de índio é OCA
(isso se for para os Tupi)
e é que também cola
se for para os Wayãpy.


Aonde Yanomami se toca
É XAPONO e a gente a insistir
Chama de MALOCA
Mas para os Xavante é RI
Para os Pataxó é PÃHÃI
É SETHE para os Fulniô
Para os Karajá é HETÔ
Para os Munduruku é uka’a...


E para os Yawalapiti?
E para os Txukahamãe?
E para os Kiriri?
E para os Krahô?
E para os Maxakali?
E para os Xakriabá?
E para os Kaaeté?
E para os Tuxá?
E para os Kantaruré?...
É bom não se confundir
Não é um FEBEAPÁ
E não se fica em pé
Quando seguro não está!!!


GG – A exemplo do espírito crítico que habita em seus poemas, que recursos você aplica na abordagem dos saberes ancestrais?
AR - A metodologia/abordagem se movimenta no levantamento dos conhecimentos prévios dos alunos acerca do conhecimento sobre os Povos Indígenas no Brasil. As intervenções acontecem num enfoque interdisciplinar: (enfaticamente, história, geografia, língua portuguesa, por exemplo), transdiciplinar: (teatro, poesia, artesanato, música, dança, etc.) com aulas interativas, apresentação de slides, audiovisuais, elaboração de álbuns seriados, elaboração de glossário ilustrado, material expositivo, cartazes, discussão sobre matérias do Jornal Porantim, leituras de textos sobre mitos e lendas, produção de textos, realização de oficina de cerâmica/artesanato, peteca e da língua tupi (da qual sairão o glossário, o canto ritual) e a performance/dramatização, culminando com exposição e artesanal e apresentação poético-musical e teatral, como resultados práticos e atividade avaliativa.


GG - Como você se considera em relação a sua aldeia?
AR - Sou destribalizado. Vivo como proscrito, um Uirás, mas, cúmplices dos meus parentes em seus projetos, ações, compartilhamentos, denúncias, documentos e, ora, a convite do cacique Juvenal Teodoro Payayá e me comprometi a realizarmos o “Projeto do Povo Payayá.” E, a convite de Edgar Otacílio de Oliveira, mestre em Educação, vou contribuir com os índios Kaimbé, um curso de Tupi. O tupinólogo Joubert de Mauro também me deu a sua palavra no sentido compartilhar conosco. Assim tem sido a minha inscrição: junto a você Graça Graúna, à Eliane Potiguara...

GG – Sentir-se “destribalizado” é uma sensação horrível, mas quero lembrar algo que eu já te falei em outras ocasiões. Acredito que é possível dizer – dentro da percepção indígena que o(a) indígena não deixa de ser ele/ela mesmo(a) em contato com o outro (o não-índio), ainda que o(a) indígena more numa cidade grande, use relógio e jeans, ou se comunique por um celular; ainda que uma parabólica pareça ao outro um objeto estranho ou incompatível com a comunidade indígena. Mesmo assim, a indianidade permanece, porque o(a) índio(a), onde quer que vá, leva dentro de si a aldeia. Esse modo de perceber o meu lugar no mundo me leva a refletir mais acerca de algumas questões ainda não resolvidas; uma delas é a Lei 11645/08. Por exemplo: você acredita que material didático utilizado na escola não-indígena é coerente com a realidade dos povos indígenas?
AR - Tua percepção é uma via sem volta. Ela nos direciona. Você, GG, querida kybyra (irmão(a) nos alimenta com esta luz. Quanto aos materiais didáticos, via de regra, não. Eles ainda não dão conta da sociodiversidade, alteridade, identidade, cultura, história, cosmologia, etc. dos povos indígenas. Contudo sabemos de exceções. Dessas, algumas práticas mais pontuais vão por conta de pessoas iguais a você Graça Graúna, Daniel Munduruku, Eliane Potiguara, Juvenal Payaya, Heitor Karai Awá-Ruvixá, entre outras. Depois as pontuais mas que são, obviamente, estimuladoras também e cumprem um papel de emancipação e cidadania. Sobretudo, realizei o Projeto de Intervenção “História e Cultura dos Povos Indígenas: passado presente pra valer”, no Centro Educacional Santo Antônio – CESA, em virtude da 3ª etapa do Estágio Supervisionado, ministrado pela Profª Sandra Augusta de Melo, no curso de Licenciatura em Pedagogia da Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP e a Faculdade Intercultural da UNEMAT que está realizando esforços e têm instrumentalizado, encorajado e graduado muitos professores indígenas e possibilitando que a sociedade não-indígena passe a reconhecer os povos indígenas e seus direitos.


GG - Em que ocasiões e de que modo você faz uso da Lei 11.645/08?
AR - Nas minhas ações nos mais diversos coletivos, tais como os Territórios de Identidade, Lista de Literatura Indígena, moderada pela escritora e professora Eliane Potiguara; como estudante no Grupo de Pesquisa, liderado por você Graça Graúna que é educadora em literatura, na UPE; nas conferências, palestras e exposições em escolas, associações, ONGs, universidades; nas abordagens artístico-culturais, através da teatrologia, poesia; no compartilhamento de materiais e nos intercâmbios com profissionais de educação, lideranças indígenas, negras e quilombolas. Também, apresentei em Salvador, dia 24, nesse mês, no 2º Seminário: “O Desafio de Educar Trocando Saberes, Renovando Esperanças”, com o CESA: “História e Cultura do Povos Indígenas: Abordagem transversal fortalecida pela Lei 11.645/08”. Sobretudo, tenho tentado articular temas/conteúdos de história, ciências/meio ambiente, língua tupi, direitos humanos, música, arte, literatura e teatro, para sensibilizar e mobilizar pessoas e coletivos ao resgate e valorização dos povos indígenas no Brasil.


GG - Até que ponto a Lei 11.645/08 contribui para que os povos indígenas sejam reconhecidos como os primeiros habitantes do Brasil?
AR - A lei é só um amparo legal. Sozinha ela não se mexe do papel e nem tampouco sai dele para trazer à luz cotidiana e nem à consciência o que está velado nos subterrâneos dos conceitos e preconceitos produzidos pelo eurocentrismo e reparar, devolver, resgatar e reescrever a história e cultura desses povos. Precisamos movimentar forças: governos, instituições de ensino e sociedade civil para que esta lei não fique apenas no papel. Se conseguirmos fazer isso – a 11.645/08, cumprirá em pari passu com as nossas práticas e utopias, a sua função nesse processo já iniciado pelos movimentos indígenas e negros ao longo dos anos. Dessa forma ela poderá contribuir no ensino-aprendizagem quando possamos compartilhar saberes, práticas e valores concernentes aos povos indígenas; na perspectiva da diminuição dos preconceitos e indiferenças que tanto têm violado e violentado seus direitos e vidas. Penso que essa lei torna o invisibilizado mais visível. Por vir à tona não será desconhecido. Por ser contextualizado em suas culturas não serão genéricos: suas faces plurais mostrarão sua sociodiversidade ameríndia, nativa, etc. A dialogia abrirá canais de exposição, debates que apresentarão essa diversidade fazendo com que as percepções se expandam formando um círculo em que as extremidades se encontrem para o reconhecimento das semelhanças e diferenças e que diminuamos as indiferenças.


GG – A nossa conversa em torno da lei 11645/08 é só uma ponta do iceberg. Vamos torcer, então, para que nas escolas a nossa história, a nossa memória, a nossa origem sejam respeitadas de maneira que o outro nos permita ser e estar no mundo. Para agradecer a sua atenção, o seu carinho e a sua sabedoria, tomo a liberdade de apresentar, aqui, o poema intitulado “Aguata py’ýi ou Acelerar os passos”. Este poema escrevi em homenagem aos parentes e às parentes indígenas e em homenagem também a sua poesia que me encanta. Que Ñanderu nos acolha!


Aguata py’ýi ou Acelerar os passos
por Graça Graúna


...e se mil línguas eu também tivesse
levaria teu sonho entre as estrelas
e lá no centro da terra
eu diria: salve negríndio Ademario!

Assim deve ser, assim será
a cada brilho da noite
a cada chama do dia
bem digo a Ñanderu
Nosso Pai verdadeiro:
recebe meu Pai, a alquimia da palavra
dos filhos e filhas da terra
recebe nossa alegria e os nossos sonhos
recebe também nossos desencantos
porque somos tua herança
assim também ressurgidos
mas não somos um, nem cem, nem mil
somos infinitamente filhos da resistência
somos parte do teu ser
Potiguara, Guarani,
Tukano, Xavante,
Sateré, Nambikuara,
Pataxó, Truká,
Terena, Munduruku,
Payaya, Fulni-ô
Xukuru, Tupi,
Yanomami....yanomami....
todos os povos
todas as nações
somos todos
do abaeté da lagoa do Senhor do Bomfim
das ladeiras de Olinda do canavial
da serra do vento da serra do mar
de Norte a Sul
de Leste a Oeste
do Oiapoque ao Chui
somos teus somos nossos
e como diria Ademario
vamos todos assim
- Aguata py’ýi!
"Acelerar os passos!"
- Aguata py’ýi!
"Acelerar os passos!"
- Aguata py’ýi!
"Acelerar os passos!"


Graça Graúna. Aguata py’ýi ou Acelerar os passos Este poema foi publicado pela vez primeira no site Overmundo, em 18 abril de 2009.

Fontes:
http://tecidodevozes.blogspot.com/2011/05/entre-verso-e-prosa-com-ademario.html
http://ademarioar.blogspot.com

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